domingo, 11 de dezembro de 2011



"Estar bem e feliz é uma questão de escolha e não de sorte ou mero acaso.
É estar perto das pessoas que amamos, que nos fazem bem e que nos querem bem.
É saber evitar tudo aquilo que nos incomoda ou faz mal,
não hesitando em usar o bom senso,
a maturidade obtida com experiências passadas ou mesmo nossa sensibilidade para isso.
É distanciar-se de falsidade, inveja e mentiras.
Evitar sentimentos corrosivos como o rancor, a raiva e as mágoas,
que nos tiram noites de sono e em nada afetam as pessoas responsáveis por causá-los.
É valorizar as palavras verdadeiras e os sentimentos sinceros que a nós são destinados.
E saber ignorar, de forma mais fina e elegante possível,
aqueles que dizem as coisas da boca para fora ou cujas palavras e caráter
nunca valeram um milésimo do tempo que você perdeu ao escutá-las.''







Friedrich Nietzshe

sábado, 3 de dezembro de 2011

PSS 3 - OS MELHORES POEMAS DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO

MELHORES POEMAS DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO
“O nordestino é marcado pela paisagem.”

AUTOR: Nasceu em Recife (PE) em 1920. Ingressou na carreira diplomática aos 25 anos, exercendo sua profissão em diversos países, por mais de quarenta anos. A cultura espanhola, que o poeta conheceu a fundo quando viveu em Barcelona e Sevilha, deixou muitas marcas na poesia de João Cabral, A Espanha foi a terra estrangeira com que o poeta estabeleceu vínculos mais fecundos. Três de seus livros foram impressos nesse país. Seu texto de maior êxito popular é Morte e Vida Severina (1955), já traduzido para o espanhol, o francês e o alemão. É membro da Academia Brasileira de Letras, eleito por unanimidade em 1968, ano em que publicou a primeira edição de suas Poesias completas.  João Cabral inaugurou um novo modo de fazer poesia em nossa literatura. A essência de sua atividade poética mostra a tentativa de desvendar os elementos concretos da realidade. Sempre guiado pela lógica, pelo raciocínio, seus poemas evitam análise e exposição do eu e voltam-se para o universo dos objetos, das paisagens, dos fatos sociais, jamais apelando para o sentimentalismo. Por isso, o prazer estético que sua poesia pode provocar deriva sobretudo de uma leitura racional, analítica, não do envolvimento emocional com o texto. Essas características levaram a crítica a ver na obra de João Cabral uma "ruptura com o lirismo" ou a considerar sua expressão poética como "antilírica". Não devemos, entretanto, supor que essa relação do poeta com o mundo concreto, objetivo, produza apenas textos descritivos. Na verdade, suas descrições ora acabam adquirindo valor simbólico, ora acabam denunciando a crítica social que o poeta pretende levar a efeito.

MODERNISMO DE 45: Situado cronologicamente na geração de 45, ocupa posição isolada no panorama histórico da poesia brasileira, por sua personalidade ímpar, sua linguagem enxuta, as imagens predominantemente visuais, o desenho dos poemas, que parecem traçados a régua e compasso. A poesia de João Cabral, como sugere o próprio poeta, divide-se em duas águas. Na primeira linha predomina a pesquisa da criação poética, o rigor formal, o repúdio a qualquer nota sentimental ou interferência do irracional, que se desenvolve a partir de O Engenheiro (1945), até A Escola das Facas (1980), incluindo Uma Faca só Lâmina (1955) e Museu de Tudo (1975). A outra grande vertente é a crítica social, ácida, mas sem qualquer nota panfletária ou demagógica, na qual persistem todas as constantes da primeira linha, mas com uma contundência de faca, uma faca só lâmina. O processo, iniciado com O Cão Sem Plumas (1950), se acentua em O Rio (1954) e Morte e Vida Severina (1955), reaparece em Dois Parlamentos (1960) e Agrestes (1984), e como que se depura no Auto do Frade (1984). Convém ainda salientar a presença obsessiva da Espanha, ao longo de toda a sua obra, desde Paisagens com Figuras (1955), Quaderna (1959), Serial, (1961) até Crime na Calle Relator (1987) e Sevilha Andando (1990).

A OBRA: Não devemos, entretanto, supor que essa relação do poeta com o mundo concreto, objetivo, produza apenas textos descritivos. Na verdade, suas descrições ora acabam adquirindo valor simbólico, ora acabam denunciando a crítica social que o poeta pretende levar a efeito.

Pedra do Sono, seu primeiro livro, apresenta elementos do surrealismo, a começar pelo título (sono). Segundo o próprio poeta, o que se pretendeu nesse livro foi "compor um buquê de imagens em cada poema,- as imagens revelam matéria surrealista no sentido de oníricas, subconscientes... " . O sono e o sonho são temas freqüentes e importantes nessa obra. O próprio autor considera sua primeira obra como "um livro falso", cujo rendimento artístico não o satisfez. Reúne poemas curtos, a maioria compostos em versos irregulares e brancos. No símbolo “pedra” temos a obsessão de ordem e clareza que motivará toda a sua produção literária; e em “sono” a poesia ainda  vaga, latente, que o poeta luta para transformar em palavras concretas. Há possíveis ressonâncias da poética de 1922, identificáveis na captação do cotidiano, na linguagem aparentemente despretensiosa, no estilo coloquial-irônico.

A ANDRÉ MASSON
Com peixes e cavalos sonâmbulos
pintas a obscura metafísica
do limbo.
Cavalos e peixes guerreiros
fauna dentro da terra a nossos pés
crianças mortas que nos
seguem
dos sonhos.

O Engenheiro, embora inclua ainda poemas de caráter surrealista, traz já as bases de sua nova concepção de poesia, segundo a qual o poema deve resultar de uma atitude racionalista, objetiva, diante da realidade concreta. Uma atitude de quem controla racionalmente as emoções, mas o dado novo é a definição de uma perspectiva  racional, do ideal de um projeto geométrico de construção de seus poemas.
Formas primitivas fecham os olhos
escafandros ocultam luzes frias;
invisíveis na superfície pálpebras
não batem.
Friorentos corremos ao sol gelado
de teu país de mina onde guardas
o alimento a química o enxofre
da noite.
Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
Diante da folha em branco:
Princípio do mundo lua nova.
Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:
Nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.
A lição de poesia
Psicologia da composição mostra o amadurecimento daquele conceito de poesia rascunhado no livro anterior. O poeta rejeita - em poemas de caráter metalingüístico - a inspiração e assume, não sem hesitar, a objetividade diante do ato de escrever. Por isso, o livro apresenta poemas com uma linguagem racional, lógica, marcados pelo extremo cuidado formal.
Saio de meu poema
como quem lava as mãos.

Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.

Talvez alguma concha
dessas (ou pássaro) lembre,
côncava, o corpo do gesto
extinto que o ar já preencheu;

talvez, como a camisa
vazia, que despi.

Os livros seguintes - O cão sem plumas, escrito em Barcelona, denuncia a realidade nordestina, também no poema  O rio (em 1ª pessoa) onde o eu-lírico  é o próprio rio. Engenhos, usinas, trem, afluentes, misturam-se na viagem do sertão ao mar. Ressalta-se na redundância , na duplicação de palavras e ritmos, o poema sugere a cadência da prosa e a monotonia das águas barrentas do Capibaribe, cão sem pêlo ou pluma, reduzido só a detritos e lama.

Paisagem do Capibaribe

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul.
da fonte cor-de-rosa
 da água  do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Em Paisagem com Figuras, compara o norte da Espanha  com a paisagem nordestina. João Cabral encontra, nos seus primeiros contatos com a geografia espanhola, o espaço árido do sertão nordestino. Por isso, em “Imagens em Castela”, do livro Paisagens com figuras (1954-1955), percebemos o retorno a Pernambuco através da recuperação da aridez da terra e dos elementos que a compõem:

(...)
No mais, não é Castela
mesa nem palco, é o pão:
a mesma crosta queimada,
o mesmo pardo no chão;

aquele mesmo equilíbrio
de seco e úmido, do pão,
terra de águas contadas
onde é mais contado o grão;

aquela maciez sofrida
que se pode ver no pão
e em tudo o que o homem faz
diretamente com a mão.

E mais: por dentro, Castela
tem aquela dimensão
dos homens de pão escasso,
sua calada condição

 Quaderna  é antilírico e composto por quartetos rimados. Publicado em Lisboa, a obra é uma espécie de divisor de águas. Ali já se encontra traçada, de modo geral, a linha poética que culminará em Educação pela Pedra e nas obras posteriores. Apresenta-se de forma matemática, ou mais precisamente, geometricamente estruturado. Quase a totalidade dos poemas que compõem o livro é formada por quartetos, forma que remete, obviamente, ao número quatro, a um quadrado, ou seja, ao que possui equilíbrio perfeito, onde nada sobra nem falta, cada parte possui seu correspondente.

 
Se diz a palo seco                                    A palo seco existem
o cante sem guitarra;                                 situações e objetos:
o cante sem; o cante;                                Graciliano Ramos
o cante sem mais nada;                             desenho de arquiteto
se diz a palo seco                                      as paredes caiadas             
a esse cante despido:                                a elegância dos pregos,
ao cante que se canta                                a cidade de Córdoba,
sob o silêncio a pino.                                  O arame dos insetos.

O cante a palo seco                                   Eis uns poucos exemplos
é o cante mais só:                                      de ser a palo seco
é cantar num deserto                                 dos quais se retirar
devassado de sol;                                      higiene ou conselho:

é o mesmo que cantar                                não de aceitar o seco
num deserto sem sombra                           por resignadamente,
em que a voz só dispõe                             mas de empregar o seco
do que ela mesma ponha.                          Porque é mais contundente


A palo seco significa literalmente, a "pau seco". É uma expressão idiomática castelhana que significa "sem rodeios", "objetivamente" e também faz referência a um cante sem acompanhamento da guitarra, a capella. Neste poema, João Cabral volta a abordar o sentido de objetividade e concisão de sua poética. Segundo Antonio Carlos Secchin, o texto se divide em quatro segmentos: 1) definição do cante; 2) relação entre o cante e o silêncio; 3) redefinição do cante; 4) exemplificação de situações e de objetos a palo seco. Inspira-se na aridez geográfica e humana do sertão para se tornar, também ela, uma poesia seca e exterior. É clara a idéia de concisão, da palavra justa, exata, racionalista, retirando os excessos ou derramamentos. Trata-se de uma poesia essencialmente racionalista.

Dois Parlamentos: parodia a gratuidade e a recorrência da fala  dos políticos institucionais, distanciados da realidade (“Congresso no Polígono das Secas” e "Festa na Casa Grande”). é dividido em duas partes. A primeira é Congresso no Polígono das Secas, onde o autor compara permanentemente o sertão com um cemitério auto-suficiente, onde nasce e morre o sertanejo e nem mesmo os vermes proliferam. A segunda é Festa na Casa-grande. Nesta parte fala-se dos habitantes do engenho (os engenhos na época já eram poucos, definhando com a competição das usinas), sempre referidos pelo autor como cassacos (um pequeno mamífero), sempre pobres, sujos e famintos, com pouca instrução, chance de desenvolvimento e uma única certeza na vida: a morte na miséria. Todas as duas partes de Dois Parlamentos tem seus fragmentos precedidos por números aleatórios.

Em Serial, de 1961, encontramos poemas compostos em  série, ultrapassando o lirismo e a musicalidade. Como característica: busca da forma, e lucidez severa da composição.

Educação pela Pedra é  coletânea  que expõe a “depuração”  atingida pelo poeta num processo rigoroso e sistemático, comparável à resistência/ consistência da pedra.
 
A Educação pela Pedra
Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, freqüentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
[pela de dicção ela começa as aulas].
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra [de fora para dentro,
Cartilha muda], para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
[de dentro para fora, e pré-didática].
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.

Linguagem seca, precisa, concisa, desprezo pelo sentimentalismo. A arte não é intuitiva - é calculada, nua e crua.

Museu de Tudo  é composto por poemas que diferem da simetria habitual do autor (por isso seu rigor eliminou tais poemas dos livros anteriores). A temática de João Cabral é recursiva, volta sempre aos seus recursos de estilo, aos seus temas obsessivos – o canavial, o cemitério... Um desses temas, sem dúvida, dentre os mais freqüentes, é a poesia.
DÍPTICO

A verdade é que na poesia
de seu depois dos cinqüenta,
nessa meditação areal
em que ele se desfez, quem tenta
encontrará ainda cristais,
formas vivas, na fala frouxa,
que devolvem seu tom antigo
de fazer poesias com coisas:

O poeta, depois dos cinqüenta anos, meditando na forma areal em que se desfez buscando seus poemas... Cristais aparece em muitas poesias dele no sentido de poemas, diamantes, algo mineral, de cata e alquimia, de lapidação. Poesia com o tom antigo de fazer poesias...

Escola das Facas  “poemas pernambucanos”, Cabral retoma a  preferência pela simetria. Há notas memorialistas e a 1ª pessoa (sem despersonalização, eis a diferença). Mantém a poética da objetividade e do rigor, depurando-se em variações infinitas sobre as mesmas bases temáticas.  No poema "Descoberta da Literatura", integrante da obra, João Cabral retoma o ambiente da sua infância:

No dia-a-dia do engenho,                  
toda a semana, durante,     
cochichavam-me em segredo:  
saiu um novo romance.
E da feira do domingo
me traziam conspirantes
para que os lesse e explicasse
um romance de barbante.
Sentados na roda morta
de um carro de boi, sem jante,
ouviam o folheto guenzo ,
a seu leitor semelhante,
com as peripécias de espanto
preditas pelos feirantes. (...)

Em 84 surge O Auto do Frade, um poema para vozes. Como Morte e Vida Severina, este também é para ser lido em voz alta. O tema é Frei Caneca, mentor da Confederação do Equador (movimento republicano em Pernambuco), executado em 1825, por ordem de Pedro I. O poema retoma o último dia do líder carmelita. O povo o vê caminhando para a morte:

“-Ei-lo que vem descendo a escada, degrau a
degrau.Como vem calmo.
 -Crê no mundo,e quis conserta-lo.
 -E ainda crê, já condenado?
 -Sabe que não o consertará.
 -Mas que virão para imita-lo.”

Em Morte e vida severina - mostram um poeta mais diretamente voltado para a temática social, analisando a realidade geográfica, humana e social do Nordeste.
Morte e vida severina, sua obra mais conhecida, é um poema narrativo que tem como sub-título auto de Natal pernambucano, trata da caminhada de um retirante - Severino - do sertão até a zona litorânea, em busca de condições para sobreviver à seca. A semelhança com um auto natalino ocorre no final, quando, ao presenciar o nascimento de uma criança, o retirante renuncia à intenção de matar-se. Paisagem com figuras traça paralelos entre duas terras que o poeta conhece bem: a Espanha e Pernambuco.

 

PSS 3 - O PAGADOR DE PROMESSA

O PAGADOR DE PROMESSAS
DIAS GOMES
“É a história de um homem que não quis conceder e foi destruído”

AUTOR: (1922-1999): Alfredo de Freitas Dias Gomes (Salvador BA 1922 - São Paulo SP 1999).  Sua obra tem uma abordagem humanista de esquerda, com temática voltada para o homem brasileiro e sua luta contra a engrenagem social. Entre elas, O Pagador de Promessas, um clássico da moderna dramaturgia brasileira. Muda-se para o Rio de Janeiro e escreve, aos 15 anos, a sua primeira peça, A Comédia dos Moralistas, premiada pelo Serviço Nacional de Teatro - SNT, em 1939. Pé de Cabra é encenada em 1942, pela companhia Procópio Ferreira, com êxito de público e crítica. Seguem-se as montagens de João Cambão, 1942; Amanhã Será Outro Dia, 1943; Doutor Ninguém, 1943; Zeca Diabo, 1943; quase todas produzidas pelo conjunto de Procópio. A partir de 1944 passa a concentrar suas atividades no rádio. Escreve e dirige programas, exerce cargos de chefia artística em várias emissoras e produz radioteatro, inclusive com adaptações de alguns textos de sua autoria originalmente escritos para palco. Volta ao teatro em 1954 com Os Cinco Fugitivos do Juízo Final, produzida por Jaime Costa, com direção de Bibi Ferreira. Sua consagração vem em 1960 com a montagem de O Pagador de Promessas pelo Teatro Brasileiro de Comédia - TBC, dirigida por Flávio Rangel e seguida, em 1962, por uma montagem carioca, do Teatro Nacional de Comédia - TNC, com direção de José Renato. Para a popularidade de O Pagador de Promessas contribui a sua versão cinematográfica dirigida por Anselmo Duarte, vencedora da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1962, e uma adaptação para a televisão que, produzida 28 anos depois da criação da obra, comprova a sua vitalidade.

GÊNERO DRAMÁTICO: O gênero dramático, desde a antigüidade clássica, teve grande importância, pois, tanto em suas origens gregas e latinas como medievais, esteve sempre associado à problemática religiosa, transformando-se, não raras vezes, em verdadeiro ritual.
Atualmente, o gênero envolve dois aspectos: de um lado, como fenômeno literário, temos o texto, a linguagem; de outro, as técnicas de representação, o espetáculo. Ater-nos-emos, aqui, unicamente ao estudo do primeiro aspecto. No drama, as personagens aparecem dotadas de características marcantes, representando realidades humanas concretas. Contudo, a caracterização será indireta, uma vez que se deve sugerir ao público os traços peculiares das personalidades representadas, sendo que o autor não pode imiscuir-se na ação. Assim, o teatro exige um esmerado juízo seletivo, pois cada um dos fatos ocorrentes deve, pela concisão o e pela síntese, ser capaz de despertar emoção. A obra dramática não apresenta descrições nem dissertações, mas busca acentuar a ação. O texto é, então, representativo, onde o diálogo é fundamental, em contraposição ao romance, à novela, ao conto, cujos textos visam a apresentar, e onde o diálogo, se houver, é bastante acessório. É importante observar ainda que, no teatro, o autor faz uma tentativa de representar mais a língua falada do que a escrita. Daí os recursos próprios para enfatizar a entonação, a voz, a mímica, os gestos etc. Na Idade Média, o teatro tinha as modalidades de auto (milagre ou mistério) e farsa. No Classicismo, predominaram a tragédia e a comédia, de cuja fusão surge, no Romantismo, o drama. Hoje, o teatro assumiu uma posição crítica com relação aos problemas político-sociais, o que mostra que ele não é apenas uma forma de diversão, mas sim um poderoso meio de contestação da sociedade. Como prova disso, temos O pagador de promessas, que foi inclusive transposta para as telas, ganhando inúmeros prêmios internacionais.

A OBRA: Trata-se de um texto escrito para teatro, ou seja, para ser levado ao palco, ser encenado. A peça é dividida em três atos, sendo que os dois primeiros ainda são subdivididos em dois quadros cada um. Após a apresentação dos personagens, o primeiro ato mostra a chegada do protagonista Zé do Burro e sua mulher Rosa, vindos do interior, a uma igreja de Salvador e termina com a negativa do padre em permitir o cumprimento da promessa feita. O segundo ato traz o aparecimento de diversos novos personagens, todos envolvidos na questão do cumprimento ou não da promessa e vai até uma nova negativa do padre, o que ocasiona, desta vez, explosão colérica em Zé do Burro. O terceiro ato é onde as ações recrudescem, as incompreensões vão ao limite e se verifica o dramático desfecho. Encenada pela primeira vez a 29 de julho de 1960, no Teatro Brasileiro de Comédia (São Paulo), essa peça marca o início da segunda fase do teatro de Dias Gomes e sua consagração como um dos mais destacados dramaturgos contemporâneos do Brasil. Considerada por alguns críticos como uma tragédia, no sentido clássico do termo, O Pagador de Promessas, segundo o próprio Dias Gomes, “é a história de um homem que não quis conceder e foi destruído”.

- Intencionalidade: A peça tem nítidos propósitos de evidenciar certas questões sócio-culturais da vida brasileira, em detrimento do aprofundamento psicológico de seus personagens. Assim, ganha força no drama a visão crítica quanto:
I - à intolerância da Igreja católica, personificada no autoritarismo do Padre Olavo, e na insensibilidade do Monsenhor convocado a resolver o problema;
II - à incapacidade das autoridades que representam o Estado - no episódio, a polícia - de lidar com questões multiculturais, transformando um caso de diferença cultural em um caso policial;
III -à voracidade inescrupulosa da imprensa, simbolizada no Repórter, um perfeito mau-caráter, completamente desinteressado no drama do protagonista, mas muito interessado na repercussão que a história pode ter;
IV - ao grande fosso que separa, ainda, o Brasil urbano do Brasil rural: Zé do Burro não consegue compreender por que lhe tentam impedir de cumprir sua promessa; os padres, a polícia, a imprensa não conseguem compreender quem é Zé do Burro, sua origem ingênua, com outros códigos culturais, outras posturas. Além disso, a peça mostra as variadas facetas populares: o gigolô esperto, a vendedora de quitutes, o poeta improvisador, os capoeiristas. O final simbólico aponta em duas direções. Em primeiro lugar a morte do Zé do Burro mostra-se com fim inevitável para o choque cultural violento que se opera na peça: ninguém, entre as autoridades da cidade grande, é capaz de assimilar o sincretismo religioso tão característico de grandes camadas sociais no Brasil, especialmente no interior nordestino. Em segundo lugar, a entrada dos capoeiristas na igreja, carregando a cruz com o corpo, sinaliza para rechaçar a inutilidade daquela morte: os populares compreenderam o gesto de Zé do Burro. O homem, no sistema capitalista, é um ser que luta contra uma engrenagem social que promove a sua desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e declara agir em defesa de sua liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo concede levianamente, ou abdica por completo de si mesmo. O Pagador de Promessas é a história de um homem que não quis conceder e foi destruído. Seu tema central é o mito da liberdade capitalista, baseado no princípio de liberdade de escolha, a sociedade burguesa não fornece ao indivíduo os meios necessários ao exercício dessa liberdade, tornando-a ilusória. O enfoque principal do autor não é a questão religiosa. As personagens, diálogos e contextos sócio-político, também permitem a reflexão nesta perspectiva. O próprio autor admite que “há também a intolerância, o dogmatismo que fazem com que vejamos inimigos naqueles que de fato estão do nosso lado. Sua preocupação não se restringe à intolerância religiosa, como podemos deduzir a partir do conforto entre o Padre Olavo e Zé-do Burro, mas abarca a intolerância universal. Interessante retrato da miscigenação religiosa brasileira, "O Pagador de Promessas" tem em sua maior preocupação destacar a sincera ingenuidade e devoção do povo, em oposição a burocratização imposta pelo próprio sistema católico em sua organização interior. "Zé do burro", um homem simples do campo trata de cumprir sua promessa (ou tentar) após ter tido Nicolau, seu burro, curado devido a promessa feita a Santa Bárbara. O que de deveria ser um simples ato de fé toma proporções gigantescas quando Zé é barrado pelo vigário local, que o impede de entrar na igreja carregando a cruz que havia prometido.

ENREDO: Uma tempestade derruba uma árvore e Nicolau, o burro, é atingido na cabeça por um por um dos galhos. Ele adoece e piora. Seu dono, desesperado faz uma promessa a Santa Bárbara. Nicolau se recupera e Zé, carregando uma pesada cruz de madeira por sete léguas, se dirige à cidade para pagar a promessa. Antes de o sol raiar, lá está ele e Rosa, sua esposa, defronte a igreja de Santa Bárbara.

Primeiro ato: A ação da peça tem início nas primeiras horas da manhã (4 e meia), numa praça, em frente a uma igreja, em Salvador. O personagem denominado Zé do Burro carrega uma cruz e se aloja na frente da igreja. A seu lado Rosa, sua mulher, apresentada como tendo "sangue quente" e insatisfação sexual. Zé espera a igreja abrir para cumprir sua promessa, feita a Santa Bárbara.  Aparecem no lugar, algum tempo depois, Marli e Bonitão: ela prostituta; ele, gigolô. Há uma clara relação de exploração e dependência entre eles. Encontrando Zé, Bonitão dirige-se a ele e percebe ser alguém ingênuo. Rosa, por sua vez, conversando com o gigolô, queixa-se de Zé, contando que ele, na sua promessa, dividiu suas terras com lavradores pobres. Percebendo a ingenuidade, Bonitão propõe-se a providenciar um local para Rosa descansar. Zé não só aceita, como incentiva. Saem os dois, Bonitão e Rosa, de cena. Segundo quadro: Aos poucos, começa o movimento ao redor da praça. Aparecem a Beata, o sacristão e o Padre Olavo, titular da igreja. Zé explica a promessa: Nicolau foi ferido com a queda de uma árvore; estando para morrer, Zé fez a promessa. O burro - Nicolau é um burro! - salva-se.  Ingenuamente, Zé revela ter usado as rezas de Preto Zeferino e feito a promessa num terreiro de candomblé, a Iansã, equivalente afro de Santa Bárbara. O padre fica escandalizado. Estabelece-se o conflito. O sincretismo Iansã - Santa Bárbara, natural para Zé do burro, é um grandioso pecado para o padre. A situação agrava-se com a revelação da divisão de terras. Impasse. O padre manda fechar a igreja e proíbe o cumprimento da promessa. Zé do burro fica atônico.
- No diálogo entre o Padre Olavo e Zé-do-burro, fica explícito a intolerância do representante da igreja Católica em relação às crendices populares e à religião de origem africana. O Padre fala com a autoridade que a igreja lhe confere, demonizando a crença popular, Zé um homem simples, do campo, expressa em sua simplicidade a perplexidade diante das verdades que o padre pronuncia. Mas seus argumentos, embora simples, são comprovados pelos fatos da vida. Ao Padre só resta a demonização e a afirmação de que o homem caiu em tentação. - Zé parece não se abalar com o discurso condenatório da autoridade eclesial. Continuando o relato, conta que as rezas surtiram efeito para o burro Nicolau.

Segundo ato: Duas horas mais tarde, já a movimentação no lugar é intensa. O Galego, dono do bar, abriu seu estabelecimento. Surgem Minha Tia, vendedora de acarajés, carurus e outras comidas típicas, Dedé Cospe-Rima, poeta popular, ao estilo repentista e o Guarda. Zé do burro quer cumprir a promessa. O Guarda tenta intervir. Rosa reaparece com "ar culpado". Chega o Repórter. Seguindo a linha do oportunismo sensacionalista, o repórter quer tirar vantagens da história de Zé do Burro. Quer torná-lo um mártir, para virar notícia. Enquanto isso descobre-se que Rosa transou com Bonitão. Marli faz um pequeno escândalo, denunciando a história Rosa-Bonitão. Segundo quadro: Três da tarde, Dedé oferece poemas para Zé, a fim de derrotar o Padre. Aparecem, em momentos subseqüentes, o capoeirista Mestre Coca e o policial, o Secreta, chamado por Bonitão, ficando ambos, por enquanto, nas cercanias. Zé começa a perder a paciência e arma uma gritaria. O padre reage. Chega o Monsenhor, autoridade da igreja, propondo a Zé uma solução: ele, Monsenhor, na qualidade de representante da Igreja, pode liberar Zé da promessa, dando-a por cumprida. Zé não aceita, dizendo que promessa foi feita à Santa e só ela poderia liberá-lo. Segue o impasse. Zé explode novamente e avança com a cruz sobre a Igreja. O padre fecha a porta. Zé, já desesperado, bate com a cruz na porta. O drama é total. - Padre Olavo permanece intransigente, Zé também. A inflexibilidade do primeiro se vincula à concepção sobre a proeminente da religião católica e a denominação da religião afro-brasileira. Ele está convicto de que defende valores cristãos, a igreja católica e a divindade que acredita.  A convicção em si não é boa ou má, mas pode causar efeitos traumatizantes em relação ao outro, isto é àquele que não partilha de tal convicção com a mesma intensidade.
- Zé também acredita em Deus, se declara católico e respeita a igreja. Mas não pode recusar, pois seria descumprir a promessa. - Zé não pode aceitar o discurso demonizador do Padre e nem compreender a relutância deste em negar seu direito de pagar a promessa feita. Sobretudo seus valores morais, próprio do homem do campo naquele contexto sócio-histórico, não permitem-no aceitar outra alternativa que o impeça de cumprir a palavra dada à santa.
 
Terceiro ato: Entardecer. Muita gente na praça e nos arredores da Igreja. Há uma roda de capoeira. O Galego, oportunista, oferece comida grátis a Zé, pois a história está trazendo movimento ao seu bar. O Secreta, no bar, avisa que a polícia prenderá Zé, ameaçando os capoeiristas, caso eles interfiram. Marli volta. Ofende Rosa, ofende Zé. O protagonista parece mudar de atitude. Resolve ir embora "à noite". Rosa quer ir embora já. Conta que Bonitão avisou a polícia. Retorna o repórter, que tenta montar um verdadeiro circo em torno do Zé, com o objetivo de vender o jornal. Chega Bonitão e convida Rosa para ir com ele. Zé pede a ela para ficar. Rosa hesita, a princípio, mas, em seguida, vai com Bonitão. Mestre Coca avisa Zé sobre a chegada da polícia. Zé está perplexo: "Santa Bárbara me abandonou". Da igreja saem o Sacristão, o Guarda, o Padre e o Delegado. Tensão da cena acentua-se. Zé ainda tenta, ingênua e inutilmente, explicar alguma coisa. Ao ser cercado, puxa uma faca. As autoridades reagem. Os capoeiristas também.  Briga e confusão. De repente, um tiro espalha gente para todos os lados. Zé é mortalmente ferido. Mestre Coca olha para os companheiros, que entendem a mensagem. Os capoeiristas tomam o corpo do Zé colocam-no sobre a cruz e, ignorando padre e polícia entram na igreja, carregando a cruz. - Diante do impasse, se torna necessário a interferência da autoridade superior. Entra em cena o Monsenhor, sua intervenção pretende demonstrar o quanto a igreja é tolerante. Diante do público que acompanha a contenda entre o padre e o pagador de promessas, ele afirma que foi designado pelo superior hierárquico para cuidar do caso e dar uma prova de tolerância da igreja para com aqueles que se desviam dos cânones sagrados. - Zé-do-Burro termina por angariar a simpatia. Ele representa os valores morais íntegros, ainda que ingênuos, é o Davi contra Golias, ou seja, um indivíduo que em sua simplicidade e sem outros recursos senão o próprio argumento e a sua determinação em pagar a promessa, enfrenta uma poderosa organização religiosa, munida de todos os argumentos e de toda a lucidez racional.  - A peça é uma contribuição fundamental para que possamos pensar as relações entre as diversas religiões e as necessidade de desenvolvermos meios e comportamentos que favoreçam a intolerância religiosa, pois mesmo hoje, os novos cruzados semeiam os ventos da intolerância. Os tempos são outros, mas o acirramento da competição no mercado de salvação das almas termina por reproduzir as pequenas e grandes inquisições que opõem o bem ao mal. A demonização da religião considerada como concorrente ainda é um recurso muito utilizado.

PSS 3 - USINA



USINA
José Lins do Rego
“Com Usina termina a série de romances que chamei um tanto enfaticamente de "Ciclo da Cana-de-açúcar".

AUTOR: José Lins do Rego Cavalcanti nasceu no Engenho Corredor, no município de Pilar, no interior da Paraíba. Tanto seu pai como sua mãe pertenciam a tradicionais famílias oligárquicas do Nordeste açucareiro. Órfão de mãe e com o pai ausente, passou sua infância no engenho do avô. Fez seus primeiros estudos em Itabaiana e na cidade da Paraíba, hoje João Pessoa, e depois cursou a faculdade de Direito do Recife. Formou-se em 1923, mesmo ano em que apareceram os seus primeiros trabalhos literários. Em 1925 foi nomeado promotor público no interior de Minas Gerais. Contudo, um ano depois, abandonou a carreira no Judiciário e transferiu-se para Maceió, onde exerceu a função de fiscal de bancos. Em 1932, ainda morando em Maceió, José Lins do Rego publicou seu primeiro romance, Menino de Engenho. Estimulado pela boa acolhida da obra, lançou no ano seguinte Doidinho e, em 1934, Bangüê. Transferiu-se para o Rio de Janeiro em 1935, passando a atuar no jornalismo. Além de grande participação na vida literária, revelou-se um fanático futebolista, tanto é que exerceu vários e importantes cargos no Clube de Regatas Flamengo e na Confederação Brasileira de Desportos. Em pouco tempo, tornou-se uma notável personalidade da vida carioca.
Em 1936, após a publicação de Usina, decretou o fim do “ciclo da cana-de-açúcar”. Lançou então romances desvinculados da realidade açucareira como Pureza, Pedra Bonita e Riacho doce. No entanto, em 1943, voltou ao mundo decadente dos engenhos com Fogo morto, realizando aquela que seria a sua obra-prima ficcional. Em 1952 veio à luz seu derradeiro relato, Os cangaceiros. Faleceu em 1957, na cidade do Rio de Janeiro. OBRAS: Ciclo da cana-de-açúcar: Menino de engenho (1932); Doidinho (1933); Bangüê (1934); O moleque Ricardo (1935); Usina (1936); Fogo morto (1943). Ciclo do misticismo e do cangaço: Pedra Bonita (1938); Cangaceiros (1953).
Temas diversos: Pureza (1937);Riacho doce (1939); Eurídice (1947).

O REGIONALISMO DE 30: o regionalismo neo-realista surgido no Brasil durante a década de 30. A prosa de ficção dos anos 30 deu continuidade ao projeto dos primeiros modernistas, a chamada fase heróica, de 1922, de aprofundamento nos problemas brasileiros através de uma literatura regionalista, de caráter neo-realista, preocupada em apresentar os problemas e as desigualdades sociais do Brasil. Prevalece uma narrativa direta, sem as ousadias formais dos romances de Oswald de Andrade, como Memórias Sentimentais de João Miramar, ou do Macunaíma de Mário de Andrade.

LINGUAGEM: Os regionalistas de 30, como Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego, enfatizam, assim como o modernismo inicial, o uso da linguagem coloquial, popular, na obra de arte literária. Mas há uma diferença fundamental. Enquanto os modernistas de 22 procuravam "escrever errado", reproduzindo as incorreções gramaticais da fala popular de maneira programática na linguagem literária, os regionalistas de 30, já livres das convenções da linguagem parnasiana acadêmica, escrevem com simplicidade, apenas ocasionalmente desrespeitando a norma culta da língua portuguesa. Em Usina José Lins usa muito o monólogo interior em terceira pessoa do singular.

O CICLO DA CANA-DE-AÇUCAR: Na obra de José Lins do Rego, a parte mais importante é a que corresponde ao chamado ciclo da cana-de-açúcar. Partindo de experiências autobiográficas – a vida no engenho do avô –, o escritor encontra na memória o fundamento de seus romances, nos quais fixa melancolicamente a decadência do engenho-de-açúcar, substituído como modo de produção pela usina. Participante ou pelo menos observador deste processo, José Lins do Rego esforça-se para registrar a verdadeira revolução social desencadeada pela nova tecnologia de produção açucareira que, em pouco tempo, levou um grande número de senhores de engenho a mais completa bancarrota econômica.

OBRA: Quinto romance de José Lins. “Com Usina termina a série de romances que chamei um tanto enfaticamente de "Ciclo da Cana-de-açúcar". A história desses livros é bem simples -- comecei querendo apenas escrever umas memórias que fossem as de todos os meninos criados nas casas-grandes dos engenhos nordestinos. Seria apenas um pedaço de vida o que eu queria contar. Sucede, porém, que um romancista é muitas vezes o instrumento apenas de forças que se acham escondidas no seu interior. Veio, após o Menino de Engenho, Doidinho, em seguida Bangüê. Carlos de Melo havia crescido, sofrido e fracassado. Mas, o mundo do Santa Rosa não era só Carlos de Melo. Ao lado dos meninos de engenho havia os que nem o nome de menino podiam usar, os chamados "moleques de bagaceira", os Ricardos. Ricardo foi viver por fora do Santa Rosa a sua história que é tão triste quanto a do seu companheiro Carlinhos. Foi ele do Recife a Fernando de Noronha. Muita gente achou-o parecido com Carlos de Melo. Pode ser que se pareçam. Viveram tão juntos um do outro, foram tão íntimos na infância, tão pegados (muitos Carlos beberam do mesmo leite materno dos Ricardos) que não seria de espantar que Ricardo e Carlinhos se assemelhassem. Pelo contrário. Depois do Moleque Ricardo veio Usina, a história do Santa Rosa arrancado de suas bases, espatifado, com máquinas de fábrica, com ferramentas enormes, com moendas gigantes devorando a cana madura que as suas terras fizeram acamar pelas várzeas. Carlos de Melo, Ricardo e o Santa Rosa se acabam, têm o mesmo destino, estão tão intimamente ligados que a vida de um tem muito da vida do outro. Uma grande melancolia os envolve de sombras. Carlinhos foge, Ricardo morre pelos seus e o Santa Rosa perde até o nome, se escraviza”. Usina é um romance de extrema decadência. No romance, a enchente do rio Paraíba é o símbolo da destruição final, é o apocalipse por tanto tempo esperando. Em Usina há um sentido social profundo e dramático, o rio cumpre sua vingança. A fuga do poderoso, assustado com as águas do rio. A enchente reles destrona os poderosos. O dr. Juca, o usineiro malogrado, é vítima de si mesmo e também de forças complexas de ordem social, de ordem econômica e até de obscuras forças de uma espécie de difuso fatalismo sertanejo. Usina é o fim do drama, aqui o romancista retoma a história do moleque Ricardo que fora desterrado para Fernando de Noronha. O dr, Juca, dono da Bom Jesus é a imagem dos velhos senhores, de uma ordem social que estava em crise. A safra do dr. Juca era de oitocentos contos de réis de lucro. E com isso ele comprava brilhantes que oferecia às suas mulheres, nos bordéis de Recife. A decadência está sempre ligada à perspectiva de corrupção moral, de diluição ética. Carlos de Melo, Ricardo e o Santa Rosa se acabam. Carlinhos foge, Ricardo morre pelos seus eo Santa Rosa perde até o nome, se escraviza. O livro é dedicado a Graciliano Ramos e a José Olympio, fraternais amigos de José Lins do Rego.