sábado, 3 de dezembro de 2011

PSS 3 - O PAGADOR DE PROMESSA

O PAGADOR DE PROMESSAS
DIAS GOMES
“É a história de um homem que não quis conceder e foi destruído”

AUTOR: (1922-1999): Alfredo de Freitas Dias Gomes (Salvador BA 1922 - São Paulo SP 1999).  Sua obra tem uma abordagem humanista de esquerda, com temática voltada para o homem brasileiro e sua luta contra a engrenagem social. Entre elas, O Pagador de Promessas, um clássico da moderna dramaturgia brasileira. Muda-se para o Rio de Janeiro e escreve, aos 15 anos, a sua primeira peça, A Comédia dos Moralistas, premiada pelo Serviço Nacional de Teatro - SNT, em 1939. Pé de Cabra é encenada em 1942, pela companhia Procópio Ferreira, com êxito de público e crítica. Seguem-se as montagens de João Cambão, 1942; Amanhã Será Outro Dia, 1943; Doutor Ninguém, 1943; Zeca Diabo, 1943; quase todas produzidas pelo conjunto de Procópio. A partir de 1944 passa a concentrar suas atividades no rádio. Escreve e dirige programas, exerce cargos de chefia artística em várias emissoras e produz radioteatro, inclusive com adaptações de alguns textos de sua autoria originalmente escritos para palco. Volta ao teatro em 1954 com Os Cinco Fugitivos do Juízo Final, produzida por Jaime Costa, com direção de Bibi Ferreira. Sua consagração vem em 1960 com a montagem de O Pagador de Promessas pelo Teatro Brasileiro de Comédia - TBC, dirigida por Flávio Rangel e seguida, em 1962, por uma montagem carioca, do Teatro Nacional de Comédia - TNC, com direção de José Renato. Para a popularidade de O Pagador de Promessas contribui a sua versão cinematográfica dirigida por Anselmo Duarte, vencedora da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1962, e uma adaptação para a televisão que, produzida 28 anos depois da criação da obra, comprova a sua vitalidade.

GÊNERO DRAMÁTICO: O gênero dramático, desde a antigüidade clássica, teve grande importância, pois, tanto em suas origens gregas e latinas como medievais, esteve sempre associado à problemática religiosa, transformando-se, não raras vezes, em verdadeiro ritual.
Atualmente, o gênero envolve dois aspectos: de um lado, como fenômeno literário, temos o texto, a linguagem; de outro, as técnicas de representação, o espetáculo. Ater-nos-emos, aqui, unicamente ao estudo do primeiro aspecto. No drama, as personagens aparecem dotadas de características marcantes, representando realidades humanas concretas. Contudo, a caracterização será indireta, uma vez que se deve sugerir ao público os traços peculiares das personalidades representadas, sendo que o autor não pode imiscuir-se na ação. Assim, o teatro exige um esmerado juízo seletivo, pois cada um dos fatos ocorrentes deve, pela concisão o e pela síntese, ser capaz de despertar emoção. A obra dramática não apresenta descrições nem dissertações, mas busca acentuar a ação. O texto é, então, representativo, onde o diálogo é fundamental, em contraposição ao romance, à novela, ao conto, cujos textos visam a apresentar, e onde o diálogo, se houver, é bastante acessório. É importante observar ainda que, no teatro, o autor faz uma tentativa de representar mais a língua falada do que a escrita. Daí os recursos próprios para enfatizar a entonação, a voz, a mímica, os gestos etc. Na Idade Média, o teatro tinha as modalidades de auto (milagre ou mistério) e farsa. No Classicismo, predominaram a tragédia e a comédia, de cuja fusão surge, no Romantismo, o drama. Hoje, o teatro assumiu uma posição crítica com relação aos problemas político-sociais, o que mostra que ele não é apenas uma forma de diversão, mas sim um poderoso meio de contestação da sociedade. Como prova disso, temos O pagador de promessas, que foi inclusive transposta para as telas, ganhando inúmeros prêmios internacionais.

A OBRA: Trata-se de um texto escrito para teatro, ou seja, para ser levado ao palco, ser encenado. A peça é dividida em três atos, sendo que os dois primeiros ainda são subdivididos em dois quadros cada um. Após a apresentação dos personagens, o primeiro ato mostra a chegada do protagonista Zé do Burro e sua mulher Rosa, vindos do interior, a uma igreja de Salvador e termina com a negativa do padre em permitir o cumprimento da promessa feita. O segundo ato traz o aparecimento de diversos novos personagens, todos envolvidos na questão do cumprimento ou não da promessa e vai até uma nova negativa do padre, o que ocasiona, desta vez, explosão colérica em Zé do Burro. O terceiro ato é onde as ações recrudescem, as incompreensões vão ao limite e se verifica o dramático desfecho. Encenada pela primeira vez a 29 de julho de 1960, no Teatro Brasileiro de Comédia (São Paulo), essa peça marca o início da segunda fase do teatro de Dias Gomes e sua consagração como um dos mais destacados dramaturgos contemporâneos do Brasil. Considerada por alguns críticos como uma tragédia, no sentido clássico do termo, O Pagador de Promessas, segundo o próprio Dias Gomes, “é a história de um homem que não quis conceder e foi destruído”.

- Intencionalidade: A peça tem nítidos propósitos de evidenciar certas questões sócio-culturais da vida brasileira, em detrimento do aprofundamento psicológico de seus personagens. Assim, ganha força no drama a visão crítica quanto:
I - à intolerância da Igreja católica, personificada no autoritarismo do Padre Olavo, e na insensibilidade do Monsenhor convocado a resolver o problema;
II - à incapacidade das autoridades que representam o Estado - no episódio, a polícia - de lidar com questões multiculturais, transformando um caso de diferença cultural em um caso policial;
III -à voracidade inescrupulosa da imprensa, simbolizada no Repórter, um perfeito mau-caráter, completamente desinteressado no drama do protagonista, mas muito interessado na repercussão que a história pode ter;
IV - ao grande fosso que separa, ainda, o Brasil urbano do Brasil rural: Zé do Burro não consegue compreender por que lhe tentam impedir de cumprir sua promessa; os padres, a polícia, a imprensa não conseguem compreender quem é Zé do Burro, sua origem ingênua, com outros códigos culturais, outras posturas. Além disso, a peça mostra as variadas facetas populares: o gigolô esperto, a vendedora de quitutes, o poeta improvisador, os capoeiristas. O final simbólico aponta em duas direções. Em primeiro lugar a morte do Zé do Burro mostra-se com fim inevitável para o choque cultural violento que se opera na peça: ninguém, entre as autoridades da cidade grande, é capaz de assimilar o sincretismo religioso tão característico de grandes camadas sociais no Brasil, especialmente no interior nordestino. Em segundo lugar, a entrada dos capoeiristas na igreja, carregando a cruz com o corpo, sinaliza para rechaçar a inutilidade daquela morte: os populares compreenderam o gesto de Zé do Burro. O homem, no sistema capitalista, é um ser que luta contra uma engrenagem social que promove a sua desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e declara agir em defesa de sua liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo concede levianamente, ou abdica por completo de si mesmo. O Pagador de Promessas é a história de um homem que não quis conceder e foi destruído. Seu tema central é o mito da liberdade capitalista, baseado no princípio de liberdade de escolha, a sociedade burguesa não fornece ao indivíduo os meios necessários ao exercício dessa liberdade, tornando-a ilusória. O enfoque principal do autor não é a questão religiosa. As personagens, diálogos e contextos sócio-político, também permitem a reflexão nesta perspectiva. O próprio autor admite que “há também a intolerância, o dogmatismo que fazem com que vejamos inimigos naqueles que de fato estão do nosso lado. Sua preocupação não se restringe à intolerância religiosa, como podemos deduzir a partir do conforto entre o Padre Olavo e Zé-do Burro, mas abarca a intolerância universal. Interessante retrato da miscigenação religiosa brasileira, "O Pagador de Promessas" tem em sua maior preocupação destacar a sincera ingenuidade e devoção do povo, em oposição a burocratização imposta pelo próprio sistema católico em sua organização interior. "Zé do burro", um homem simples do campo trata de cumprir sua promessa (ou tentar) após ter tido Nicolau, seu burro, curado devido a promessa feita a Santa Bárbara. O que de deveria ser um simples ato de fé toma proporções gigantescas quando Zé é barrado pelo vigário local, que o impede de entrar na igreja carregando a cruz que havia prometido.

ENREDO: Uma tempestade derruba uma árvore e Nicolau, o burro, é atingido na cabeça por um por um dos galhos. Ele adoece e piora. Seu dono, desesperado faz uma promessa a Santa Bárbara. Nicolau se recupera e Zé, carregando uma pesada cruz de madeira por sete léguas, se dirige à cidade para pagar a promessa. Antes de o sol raiar, lá está ele e Rosa, sua esposa, defronte a igreja de Santa Bárbara.

Primeiro ato: A ação da peça tem início nas primeiras horas da manhã (4 e meia), numa praça, em frente a uma igreja, em Salvador. O personagem denominado Zé do Burro carrega uma cruz e se aloja na frente da igreja. A seu lado Rosa, sua mulher, apresentada como tendo "sangue quente" e insatisfação sexual. Zé espera a igreja abrir para cumprir sua promessa, feita a Santa Bárbara.  Aparecem no lugar, algum tempo depois, Marli e Bonitão: ela prostituta; ele, gigolô. Há uma clara relação de exploração e dependência entre eles. Encontrando Zé, Bonitão dirige-se a ele e percebe ser alguém ingênuo. Rosa, por sua vez, conversando com o gigolô, queixa-se de Zé, contando que ele, na sua promessa, dividiu suas terras com lavradores pobres. Percebendo a ingenuidade, Bonitão propõe-se a providenciar um local para Rosa descansar. Zé não só aceita, como incentiva. Saem os dois, Bonitão e Rosa, de cena. Segundo quadro: Aos poucos, começa o movimento ao redor da praça. Aparecem a Beata, o sacristão e o Padre Olavo, titular da igreja. Zé explica a promessa: Nicolau foi ferido com a queda de uma árvore; estando para morrer, Zé fez a promessa. O burro - Nicolau é um burro! - salva-se.  Ingenuamente, Zé revela ter usado as rezas de Preto Zeferino e feito a promessa num terreiro de candomblé, a Iansã, equivalente afro de Santa Bárbara. O padre fica escandalizado. Estabelece-se o conflito. O sincretismo Iansã - Santa Bárbara, natural para Zé do burro, é um grandioso pecado para o padre. A situação agrava-se com a revelação da divisão de terras. Impasse. O padre manda fechar a igreja e proíbe o cumprimento da promessa. Zé do burro fica atônico.
- No diálogo entre o Padre Olavo e Zé-do-burro, fica explícito a intolerância do representante da igreja Católica em relação às crendices populares e à religião de origem africana. O Padre fala com a autoridade que a igreja lhe confere, demonizando a crença popular, Zé um homem simples, do campo, expressa em sua simplicidade a perplexidade diante das verdades que o padre pronuncia. Mas seus argumentos, embora simples, são comprovados pelos fatos da vida. Ao Padre só resta a demonização e a afirmação de que o homem caiu em tentação. - Zé parece não se abalar com o discurso condenatório da autoridade eclesial. Continuando o relato, conta que as rezas surtiram efeito para o burro Nicolau.

Segundo ato: Duas horas mais tarde, já a movimentação no lugar é intensa. O Galego, dono do bar, abriu seu estabelecimento. Surgem Minha Tia, vendedora de acarajés, carurus e outras comidas típicas, Dedé Cospe-Rima, poeta popular, ao estilo repentista e o Guarda. Zé do burro quer cumprir a promessa. O Guarda tenta intervir. Rosa reaparece com "ar culpado". Chega o Repórter. Seguindo a linha do oportunismo sensacionalista, o repórter quer tirar vantagens da história de Zé do Burro. Quer torná-lo um mártir, para virar notícia. Enquanto isso descobre-se que Rosa transou com Bonitão. Marli faz um pequeno escândalo, denunciando a história Rosa-Bonitão. Segundo quadro: Três da tarde, Dedé oferece poemas para Zé, a fim de derrotar o Padre. Aparecem, em momentos subseqüentes, o capoeirista Mestre Coca e o policial, o Secreta, chamado por Bonitão, ficando ambos, por enquanto, nas cercanias. Zé começa a perder a paciência e arma uma gritaria. O padre reage. Chega o Monsenhor, autoridade da igreja, propondo a Zé uma solução: ele, Monsenhor, na qualidade de representante da Igreja, pode liberar Zé da promessa, dando-a por cumprida. Zé não aceita, dizendo que promessa foi feita à Santa e só ela poderia liberá-lo. Segue o impasse. Zé explode novamente e avança com a cruz sobre a Igreja. O padre fecha a porta. Zé, já desesperado, bate com a cruz na porta. O drama é total. - Padre Olavo permanece intransigente, Zé também. A inflexibilidade do primeiro se vincula à concepção sobre a proeminente da religião católica e a denominação da religião afro-brasileira. Ele está convicto de que defende valores cristãos, a igreja católica e a divindade que acredita.  A convicção em si não é boa ou má, mas pode causar efeitos traumatizantes em relação ao outro, isto é àquele que não partilha de tal convicção com a mesma intensidade.
- Zé também acredita em Deus, se declara católico e respeita a igreja. Mas não pode recusar, pois seria descumprir a promessa. - Zé não pode aceitar o discurso demonizador do Padre e nem compreender a relutância deste em negar seu direito de pagar a promessa feita. Sobretudo seus valores morais, próprio do homem do campo naquele contexto sócio-histórico, não permitem-no aceitar outra alternativa que o impeça de cumprir a palavra dada à santa.
 
Terceiro ato: Entardecer. Muita gente na praça e nos arredores da Igreja. Há uma roda de capoeira. O Galego, oportunista, oferece comida grátis a Zé, pois a história está trazendo movimento ao seu bar. O Secreta, no bar, avisa que a polícia prenderá Zé, ameaçando os capoeiristas, caso eles interfiram. Marli volta. Ofende Rosa, ofende Zé. O protagonista parece mudar de atitude. Resolve ir embora "à noite". Rosa quer ir embora já. Conta que Bonitão avisou a polícia. Retorna o repórter, que tenta montar um verdadeiro circo em torno do Zé, com o objetivo de vender o jornal. Chega Bonitão e convida Rosa para ir com ele. Zé pede a ela para ficar. Rosa hesita, a princípio, mas, em seguida, vai com Bonitão. Mestre Coca avisa Zé sobre a chegada da polícia. Zé está perplexo: "Santa Bárbara me abandonou". Da igreja saem o Sacristão, o Guarda, o Padre e o Delegado. Tensão da cena acentua-se. Zé ainda tenta, ingênua e inutilmente, explicar alguma coisa. Ao ser cercado, puxa uma faca. As autoridades reagem. Os capoeiristas também.  Briga e confusão. De repente, um tiro espalha gente para todos os lados. Zé é mortalmente ferido. Mestre Coca olha para os companheiros, que entendem a mensagem. Os capoeiristas tomam o corpo do Zé colocam-no sobre a cruz e, ignorando padre e polícia entram na igreja, carregando a cruz. - Diante do impasse, se torna necessário a interferência da autoridade superior. Entra em cena o Monsenhor, sua intervenção pretende demonstrar o quanto a igreja é tolerante. Diante do público que acompanha a contenda entre o padre e o pagador de promessas, ele afirma que foi designado pelo superior hierárquico para cuidar do caso e dar uma prova de tolerância da igreja para com aqueles que se desviam dos cânones sagrados. - Zé-do-Burro termina por angariar a simpatia. Ele representa os valores morais íntegros, ainda que ingênuos, é o Davi contra Golias, ou seja, um indivíduo que em sua simplicidade e sem outros recursos senão o próprio argumento e a sua determinação em pagar a promessa, enfrenta uma poderosa organização religiosa, munida de todos os argumentos e de toda a lucidez racional.  - A peça é uma contribuição fundamental para que possamos pensar as relações entre as diversas religiões e as necessidade de desenvolvermos meios e comportamentos que favoreçam a intolerância religiosa, pois mesmo hoje, os novos cruzados semeiam os ventos da intolerância. Os tempos são outros, mas o acirramento da competição no mercado de salvação das almas termina por reproduzir as pequenas e grandes inquisições que opõem o bem ao mal. A demonização da religião considerada como concorrente ainda é um recurso muito utilizado.

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