quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Dizem que os cães vêem coisas - URCA 2012




São tantos (embora ainda poucos) os ensaios e artigos relativos à obra de Moreira Campos publicados desde o surgimento de Vidas Marginais (1949) que o articulista de 2004 corre o risco de repetir conceitos e opiniões. No entanto, como estou empenhado em escrever breves impressões a respeito dos principais contistas cearenses, não posso ficar atado à opinião dos críticos. Nem mesmo à de estudiosos como Batista de Lima, especialmente no livro Moreira Campos – A Escritura da Ordem e da Desordem (Edição da Secretaria da Cultura e Desporto do Estado do Ceará, Fortaleza, 1993), sem dúvida um dos mais bem realizados estudos da obra moreiriana.
Especializou-se Moreira Campos no drama familiar urbano, embora tenha também cultivado o chamado conto rural, semelhante ao regionalista. Em muitas narrativas esse conflito se dá no plano amoroso: quase sempre marido ou mulher infiel. Outras vezes o embate é interior, do protagonista. Em “A gota delirante”, do livro Dizem que os cães vêem coisas (2 a. ed. 1993), o protagonista se debate em pensamentos sobre possuir ou não a mulher do primo. Constituída quase toda de blocos narrativos, com poucas falas e uma ou outra referência a objetos descritíveis (“vestido fino”, “calcinha de rendas”, “leveza desesperadora do baby-doll”), a história se dá mais no plano da imaginação, mesmo não sendo narrada na primeira pessoa. Em “A Carta”, do mesmo livro, a noiva se apaixona pelo amigo do noivo, que lhe entregava cartas enviadas pelo futuro marido. Em poucas linhas o leitor vai percebendo o desenrolar do conflito, sem que o noivo apareça. Em “Banho de Bica” o drama amoroso reaparece. O núcleo dramático (o banho de bica do homem com a empregada na casa de campo) se esgarça no tempo e no espaço. A mulher traída esbraveja, planeja a separação conjugal, e a trama se vai esfiapando, até alcançar o fim sem desenlace, num diálogo banal: “– A manhã está bonita – ele disse. – Está.”

Um dos mais famosos contos de Moreira Campos é “Lama e Folhas”, do primeiro livro. Narrado na primeira pessoa, como muitos outros dos primeiros livros, tem como tema a morte. O narrador, o rico ou bem sucedido João Sampaio, fala de si mesmo (“Comprei um sítio, perto, num pé de serra”), a misturar passado e presente (flashback), e aqui e ali fala da mulher e outros personagens menores, e principalmente do filho único, do nascimento à morte, aos cinco anos. Ao leitor é dado saber que a história é do começo do século XX: “Às vezes, encontrávamo-nos os dois numa esquina, no ponto do bonde”. A linguagem é apurada, de quem leu muito, embora estas leituras do narrador não se mencionem no decorrer da narrativa. Constituído quase todo de narrações, o conto traz breves diálogos (quase sempre pergunta e resposta). No escoar da narração uma ou outra consideração de ordem moral: “A essa gente não se pode dar muita confiança. Sentem-se logo à vontade e no outro dia faltam ao serviço.”

Os contos de Moreira Campos são narrados ora na primeira pessoa, ora por narrador onisciente. Em “Vigília”, Anselmo mistura os tempos, num vai e vem contínuo, como ondas de um mar de tempos. Sai do presente, dá um longo mergulho no passado, volta ao presente. Como João Sampaio, traça o próprio perfil psicológico: “Envolvi-me numas transações duvidosas: contrabandos, andei vendendo umas máquinas ao governo, com lucro exorbitante.” Outro narrador, Edmundo, de “Coração Alado”, se vale do monólogo interior ou do solilóquio para narrar suas peripécias. Na verdade, são memórias escritas: “Foi quando me veio a idéia de lançar ao papel estes retalhos de memória.” Também neste conto o leitor depara o bonde, isto é, vê situada num tempo mais passado a história. O narrador de “Eu e Dinha” (o “eu” do título é, logicamente, o narrador) não se nomeia, como a mostrar que a protagonista é a negra Dinha, “minha preta”. O tempo é antigo, o dos bondes; o lugar, a velha Fortaleza: “O bonde avançava. Cruzamos muitas ruas, que Dinha não conhecia. Procurava mostrar-lhe prédios e praças. O Parque da Liberdade, a igreja do Coração de Jesus. – Ali é o Liceu.”
A morte como tema central está presente em diversas narrativas, especialmente na obra-prima intitulada “Dizem que os cães vêem coisas”. A morte é a própria protagonista, como se pode ver logo no primeiro parágrafo. Os cães seriam os anunciadores dela – ser invisível aos seres humanos.

A presença de velhos, moribundos ou não, é também uma constante nos contos moreirianos. O conflito é sempre doloroso, como em “A visita ao filho”. Nonato, esclerosado, sai de casa em busca da casa do filho casado e se perde. Desta vez, porém, o desenlace é feliz.

Outro conto clássico é “O Preso”, ambientado em pequena cidade, com a praça da estação, a estrada de ferro, o carro de boi, homens em conversa na calçada, dois soldados do destacamento. O narrador onisciente descreve o ambiente onde os personagens se situam e se movimentam, como se portasse uma câmera de filmar. Todo o embate, porém, se circunscreve a um homem conduzido para a delegacia: “Um velho mirrado e de pele escura puxava um jumento pelo cabresto, ente dois soldados do destacamento.” A narração do calvário do pobre homem é perfeita. Trancafiado numa sela, repete uma frase: “Me soltem, que eu não tenho paciência de ser preso.” A tragédia se consuma com o suicídio, cujo início se dá de fato quando o preso se aproxima da janela e se dirige a um menino na rua: “Olhe, solte ali aquele jumento. Ele é meu. Quer se deitar não pode. Tire o cabresto e me dê.” Com o cabresto se enforcou.

A cidade pequena como palco dos conflitos surge em diversas narrativas. É o caso de “Profanação”, com sua praça principal, o tabuleiro de gamão onde velhos jogam, o casal de jumentos, a igreja onde se dá o coito animal, a profanação do templo. Os protagonistas (os animais) geram um conflito na cabeça dos seres humanos: para alguns homens tudo não passou de um ato animal; para os mais ligados à Igreja, como o padre, os jumentos representavam demônios. A beata Inacinha se fez “perplexa e hipnotizada”. E o narrador-escritor em nenhum momento opina.

“Os Anões”, em que a concisão do contista é mais visível. Mais uma vez Fortaleza é o ambiente da trama. Mais uma vez a estrutura de círculo: uma frase que se repete (“Tu agüenta mesmo um homem?”), no começo, no meio e no fim, a mostrar que o drama da anã Lourdinha não findou, continua. Em “O último hóspede ou Eurico, o noivo” toda a trama se desenvolve numa pequena pensão. Mais uma vez o embate amoroso, aqui de forma inusitada, eis que a terceira personagem, a noiva, não se apresenta, é apenas mencionada, e a quarta, o marido traído, mal aparece, como se de nada soubesse. A narração se faz lenta, noturna, sonambular, como se a história não tivesse fim – os mesmos gestos, os mesmos atos todos os dias, todas as noites. O drama como que se manifesta às escondidas, sem testemunhas. Ou sem espectadores. Em razão disso, não há desfecho. Em “Os três retratos” a concisão se aguça. Em “O Banho”, como o próprio título sugere, tudo se dá num instante, num curto lapso de tempo. Um instantâneo, talvez. Também breve é “As Corujas”, outra obra-prima. Num necrotério, o vigia dos mortos em luta com as corujas, que “pousam sobre o peito dos mortos, arranhando-lhes os olhos parados”. O tempo se alonga, numa luta desesperada do homem em defesa da integridade física dos mortos. E o círculo se fecha, sem final. “Os Estranhos Mendigos” também não apresenta desfecho, porém há nele um embate passado – assalto ao comércio pelos soldados do destacamento –, como a infra-estrutura do conflito posterior – os dois mendigos (ex-soldados) estropiados nas ruas. Esse lapso de tempo alongado se vê em muitos contos, como em “Frustração”.

Esse tipo de conto sem desfecho, iniciado em O Puxador de Terço, se aperfeiçoou no livro Dizem que os cães vêem coisas (que não deixa de ser uma antologia pessoal). “O cachorro” é todo uma síntese. E o desenlace se dá no meio da história. Ou então o desfecho é a trama. Em “Os Doze Parafusos”, outra das mais conhecidas e belas narrativas curtas de Moreira Campos, o remate se dá um pouco antes do final, quando a personagem se suicida. Em “Os moradores do casarão” os conflitos mais importantes são passados. Em razão disso, o desenlace (no presente) é apenas um instante do cotidiano.

Utiliza Moreira Campos em alguns contos o personagem sem nome, como em “A Carta”, do volume Dizem que os cães vêem coisas: o noivo, a noiva, o amigo, a mãe, a velha, ele, ela. E também em “Os doze parafusos”. Às vezes o único personagem com nome é secundário, como o Dr. Marcos, deste conto. Veja-se também “Banho de bica”. O homem é o “cínico”, o “canalha”. A mulher, que assim o trata, é apenas “ela”, ou “a mulher”. No entanto, a filha do casal, menina, sem importância no entrecho, é Denise. Desse mesmo tipo são “O dia de Santa Genoveva” e “Os meninos”. Neste os meninos não têm nome nem “aquela que ajudara a criar os meninos”. O único personagem com nome é Osório, o entregador de marmitas, que aparece apenas uma vez. E assim ocorre em muitos outros contos. Em “A caixa de fósforos vazia” o conflito amoroso reaparece em personagens sem nome: a tia, o tio, o sobrinho. Para o leitor está tudo claro, porém o tio aparece como o grande inocente. Há, no entanto, narrativas em que todos os personagens são nomeados, como as freiras de “A Ceia”. De enredo simples, há uma cena central, a própria ceia, com narração mais encorpada, seguida de outras cenas menores.

Não se vê em Moreira Campos a descrição excessiva. Quando a utiliza, no entanto, o faz de maneira a preparar o terreno (o palco) para que o personagem nele se movimente. Veja-se “O Peregrino”, o começo: “Chão rude, áspero, mais de pedregulhos.” Mais adiante o narrador fala de horizontes, ramaria seca, bacuraus, folhagem do imbuzeiro. O enredo é de cunho regionalista: vidas pobres, morte por picada de cobra, a chegada do peregrino. Em “Irmã Cibele e a Menina” ocorrem breves descrições do orfanato de freiras onde se desenrola a trama: o pavilhão, o longo corredor, o pavimento escuro. Como em muitos outros contos, o tempo da narração é fatiado. Diversas ações se encadeiam e culminam (desfecho) na sugação dos nascentes seios da menina órfã pela boca de irmã Cibele. (...) “a língua de irmã Cibele era ativa e morna, os dentes mordiam com muita delicadeza, quase roíam.” No último parágrafo (ato) a menina se recolhe ao dormitório e se põe a soliloquiar. Sugere o narrador a proximidade do sono. O homossexualismo feminino está presente também em “Os desgostos de Dona Bianca”. Para o leitor esse conflito só se aguça no meio da narrativa.

Em outros contos Moreira Campos apresenta diversas ações (tempos) subseqüentes, como em “A Sepultura”, no qual se apresentam alguns núcleos dramáticos: no ônibus quebrado; no caminhão, com o motorista e o ajudante; na estrada (a fuga de Durvalina pelo mato); e no dia seguinte na casa dos pais e de volta ao lugar onde estaria uma sepultura e de onde a protagonista fugiu no dia anterior.

Muitos outros aspectos na obra de Moreira Campos poderiam ser mencionados neste artigo, como a presença de animais nos dramas (moscas, cães, corujas, jumentos). Outros merecem análise mais profunda, talvez até ensaios exclusivos, como é o caso do desfecho diluído ou posto no meio da narração. Entretanto, isto é apenas um artigo.





Um comentário:

  1. Ótimo, vai ser de grande valia!

    Beijos,
    Yan Ferreira de Alencar
    4º KYU,JKA-CE,CBKI
    17 Anos
    Juazeiro do Norte,Ceará

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