quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Os Cus de Judas - URCA 2012

Seis anos após o término da guerra colonial, é lançado, em 1979, Os Cus de Judas, de Antonio Lobo Antunes, que conta a trajetória de um soldado português que servira o exército colonial em Angola e, a partir desse contacto com a situação em África, vê sua vida, seus valores sendo destruídos.

Segundo o autor, em entrevista publicada em Lisboa em abril de 1994, o livro é parte de uma trilogia que inclui Memória de Elefante (anterior) e, Conhecimento do Inferno (posterior) a obra em questão. O retrato da guerra colonial é a marca dessa etapa ou ciclo de sua vida, como ele mesmo afirma.

"A dolorosa aprendizagem da agonia" - assim classifica Lobo Antunes a guerra de Angola, fração da guerra colonial portuguesa; assim se resume o processo a que é submetido o leitor na descoberta daquele que é o segundo livro do autor.

Encontramo-nos perante um testemunho. Ao evoluirmos gradualmente na sua leitura vamos desmontando a guerra do ultramar, sendo guiados através dos 27 meses que o narrador se encontrou ao serviço da pátria portuguesa.

Partindo do relato do narrador, das experiências a que foi sujeito e da forma como as interpreta e com elas lida, traça-se um percurso que desemboca inevitavelmente na conclusão/admissão do gigantesco, inacreditável absurdo da guerra.

Delineia-se um retrato demasiado bruto e verdadeiro para se poder falar de uma caricatura. A seriedade e crueldade da narrativa fazem surgir o livro mais como que uma denúncia. Ou antes: é deste modo apresentada uma visão da realidade, uma posição sobre os fatos, uma voz silenciada que entra em erupção e vem contar a sua versão. Numa narrativa não-linear e fragmentada, Lobo Antunes revela as inquietações existenciais de um ser humano, na indelével experiência de uma guerra, que se misturam às memórias de infância e juventude na Lisboa salazarista.

O autor utiliza-se, na maior parte do romance, do fluxo de consciência e da associação de idéias, para construir a história e o perfil de seu narrador-protagonista, um personagem que, a partir de "uma dolorosa aprendizagem da agonia", vê sua vida e seus valores estilhaçados pela melancolia. O que lhe resta são fragmentos de memória — a criança que visitava com os pais o jardim zoológico aos domingos, o jovem que assiste impassível a seu futuro sendo traçado pela autoridade inquestionável de uma família salazarista, o adulto apático e frustrado diante da violência que lhe retira as rédeas e o sentido da vida.

Decadência, putrefação, pestilência, morte. Adicionando canalhice, violência e absurdidade poder-se-ia reunir as palavras-chave basilares de tal exposição.

O texto de Antunes não se enquadra no gênero de narrativa de viagem tal como é concebido pela literatura moderna, entretanto, é possível a leitura de um discurso de viagem apanhado de viés, ou seja; a desconstrução ou a ante-viagem (se é que podemos utilizar esses termos) , visto sob a óptica de uma simbologia atual.

Tempo / espaço / estrutura

Os estilhaços que recompõem os contornos da memória nos romances de Lobo Antunes recolhem informações vividas em espaços de tempo variados, mas contados em breves períodos, de chofre, de um só fôlego. No caso de Os Cus de Judas, o “ato de contar” tem as ações transcorrendo em uma só noite. Se o tempo é breve no presente da narrativa — entre a mesa de um bar, algumas boas doses de uísque, um convite e o anseio para vencer a solidão - o tempo recolhido pela memória é elástico, é um tempo que se volta para a infância remota, as recordações da família, um tempo em que ele se alista nas fileiras da força colonialista portuguesa, um tempo em que ele parte e, finalmente, um tempo em que ele sobrevive na África, numa luta que lhe parece vazia de sentido.

Com vinte e três capítulos curtos, seqüenciados de A a Z, sem interrupções na ordem do alfabeto, desenrolam-se ações em dois planos temporais: um cronológico, período de tempo de uma noite, que vai do encontro do narrador com uma mulher em um bar até o amanhecer deles, depois de uma noite de sexo, sem amor. O tempo cronológico constitui-se no tempo da fala, no tempo de um enorme monólogo em que o narrador expõe a uma mulher não nomeada suas angústias e a mediocridade da vida que o cerca; outro passado, um tempo elástico reconstituído a partir de fragmentos soltos, recolhidos dos escombros das memórias constituem uma coleção de insucessos que o levam a sentir-se um ser espúrio, um pária, um fracassado.

Convém lembrar que a sensação de fracasso que domina o narrador está intimamente associada aos insucessos dos tempos em que ele exercia funções no exército português de combate às guerrilhas africanas.

Passamos vinte e sete meses juntos nos cus de Judas, vinte e sete meses de angústia e de morte juntos nos cus de Judas, nas areias do Leste, nas picadas dos Quiocos e nos girassóis do Cassanje, comemos a mesma saudade, a mesma merda, o mesmo medo, e separamo-nos em cinco minutos, um aperto de mão, uma palmada nas costas, um vago abraço, e eis que as pessoas desaparecem, vergadas ao peso da bagagem, pela porta de armas, evaporadas no redemoinho civil da cidade.

Durante uma única noite, o narrador tece o enredo da obra, elaborando um relato em que confunde as ações de guerra, a política desenvolvida pelo seu país quanto às colônias na África e as posições assumidas por ele (país) e ele (narrador) após o término do conflito, o passado, o casamento, enfim, misturam-se os fatos todos da vida que afloram pelas doses excessivas de álcool e de solidão.

Foco narrativo

A obra é narrada em primeira pessoa, por um narrador-personagem.

Linguagem

Narrativa altamente sarcástica. Linguagem irreverente, inovadora,  o  erotismo com que descreve as mulheres, dá, à obra, um caráter feminino. A linguagem chula, os palavrões que aparecem no decorrer da obra, revelam a revolta do narrador com a ditadura, salazarista. O autor-narrador, em um bar, usando o monólogo, pois conversa com uma mulher que nunca lhe responde, enquanto bebem, narra-lhe a sua vida,   fazendo uma crítica mordaz à Ditadura, não só em termos políticos, como também à castração cultural por ela imposta.

Vindo de uma família de militares, o universo familiar também não escapa ao crivo crítico, principalmente os velhos, avós, avôs, tias e tios, por refletirem um mundo estagnado, sem perspectivas de avanço.

Lembranças sinestésicas (sinestesia) da infância, representada por termos ligados ao jardim zoológico: bichos, vendedores ambulantes e do professor preto nos rinques de patinação, mesclam-se ao mundo adulto: termos ligados à medicina.

Tudo isso forma uma linguagem inovadora, de uma plasticidade surreal.

Ex.: “o empregado de ancinho que empurrava as folhas para um balde aparentava-se, sem dúvida ao cirurgião que me varreria as pedras da vesícula para um frasco coberto de rótulo adesivo; uma menopausa vegetal em que os caroços da próstata e os nós dos troncos se aproximavam e confundiam...”

“O restaurante do jardim, onde o odor dos animais se insinuava em farrapos diluídos no fumo do cozido, apimentando de uma desagradável sugestão de cerdas o sabor das batatas..”

“ ...guaritas de sentinelas onde oficiavam empregados bolorentos, a piscarem órbitas míopes de mocho na penumbra úmida?”

Personagens

Sofia - lavadeira negra com quem o narrador-personagem teve um filho.

Isabel - sua ex-esposa.

Tia Teresa – a velha tia que nunca o elogiava, só o criticava.

Maria José

Mete Lenha

Senhor Jonatão – negro enfermeiro com sorriso de Tim-Tim.

Enredo

Ao retornar a Portugal, após vinte e cinco meses de sofrimento, servindo como médico na Guerra Colonial da África, o autor-narrador se  desabafa, num monólogo com uma moça em um bar. O sofrimento, a violência, as mortes e  a hipocrisia política vivenciadas, marcaram-no de tal maneira que ele não consegue se adaptar à vida costumeira, tanto que ele acaba se separando da mulher, Isabel, com quem tinha duas filhas.

Enquanto conversa com a moça, fala da casa em que crescera, perto do zoológico, de seus pais, do quarto dos irmãos, de onde se viam os camelos e  ouviam as focas.

Ironicamente, fala das tias: “avançavam aos arrancos como dançarinas de caixinha de música nos derradeiros impulsos da corda...e proclamavam azedamente” que ele estava magro.

A frase que elas diziam “felizmente a tropa há-de torná-lo um homem.”, acabou se tornando uma profecia transmitida ao longo da sua infância e da adolescência “por dentaduras postiças de indiscutível autoridade, que se prolongava em ecos estridentes nas mesas de canasta, onde as fêmeas do clã forneciam à missa dos domingos...”.

Os tios, que ele admirava em criança, em adulto, são vistos como fúteis, que só sabiam discutir o tamanho das nádegas das criadas.

A figura de Salazar, que o acompanha desde criança, é vista com ironia.

Lembra-se do dia da sua partida para Angola, a bordo de um navio cheio de tropa e da “tribo”, que compareceu em peso no cais, num arroubo patriótico, agradecida ao governo que lhe possibilitava a metamorfose de o transformar em homem. Para ele, os familiares presentes tinham ido assistir à sua própria morte.

No campo militar em Santa Margarida, a ginástica diária do autor e demais militares era a masturbação.

Lá, as fúteis senhoras do Movimento Nacional Feminino iam distribuir medalhinhas de santos com a efígie de Salazar.

À medida em que o navio se afastava de Portugal, o autor se questionava, tentando buscar um motivo para estar ali.

Ao chegar em Luanda, depara-se com a miséria: “as  gordas barrigas de fome das crianças imóveis.”. Sentindo-se mal,  pois fora nascido e criado “num acanhado universo de crochê, crochê de tia-avó e croché manuelino”, tentava achar uma justificativa bíblica para tamanho massacre.

Foi em Luanda que começou a sua dolorosa aprendizagem da agonia.

Em Gago Coutinho ficava o posto da PIDE (Policia Internacional de Defesa do Estado), a administração, o café do Mete Lenha e a aldeia dos leprosos.

Uma vez por semana o sino da igreja tocava chamando os leprosos para remédios no hospital. Lá, o senhor Jonatão, o enfermeiro negro da  delegação de saúde nominal, que sorria constantemente como os chineses de Tim-Tim, distribuía-lhes comprimidos.

Gago Coutinho era também o café do Mete Lenha, branco sopinha de massa cujo esforço pra falar o torcia de caretas de defecação, casado com “uma espécie de botija de gascidia enfeitada de colares estridentes, sempre a queixar-se aos oficiais dos beliscões com que os soldados lhe homenageavam as nádegas atlânticas, difíceis, aliás de discernir numa mulher aparentada a um imenso glúteo rolante em que mesmo as bochechas possuíam qualquer coisa de anal e o nariz se aparentava a inchaço incômodo de hemorróida.”

No edifício sinistro do hospital civil,  a cada ferido  de emboscada ou de mina que chegava, o autor narrador se questionava se eram os guerrilheiros ou Lisboa que os assassinavam, Lisboa, os americanos, os russos, os chineses e esbravejava: “ o caralho da puta que o pariu combinados para nos foderem os cornos em nome de interesses, que me escapam, quem me enfiou sem aviso neste cu de Judas de pó vermelho e de areia.”

Às vezes chegavam visitas inesperadas ao cu de Judas: oficiais do Estado-Maior de Luanda, que o formol do ar condicionado conservava.

Já bêbado, revela que em 61 ele já fugia da polícia do Estádio Universitário e que a única coisa que Salazar fazia era espetar o dedo.

Retomando a narrativa da África, fala dos bordéis e das bebedeiras.

Em Chiúme, a região mais miserável,  em 22 de junho de 71, é chamado no rádio para receber a notícia do nascimento da sua filha, casara-se quatro meses antes da partida.

Ainda lá, depara-se com uma cena chocante, sessenta pessoas encerradas em uma senzala, alimentavam-se em latas enferrujadas, de restos de comida do quartel.

Após oferecer-se para pagar a conta, ele fala sobre um exército de negros que servia a PIDE e era conhecido como “os assassinos a soldo dos colonialistas portugueses”

Nove meses depois, foi conhecer a filha.

Retornando à África,  conheceu Sofia, uma lavadeira negra, com quem teve um filho, mas ela foi levada pela PIDE para “trocar o óleo dos soldados”, esta foi a informação que ele recebeu quando a procurou. O narrador, mesmo se revoltando com a situação, nada fez para resgatá-la.

Mesmo em seu apartamento e em companhia da mulher do bar, ele continua a narrativa sobre a guerra , chegando a se sentir um prisioneiro do governo.

Após a noite amorosa fracassada, ele começa a imaginar vários apetrechos supérfluos anunciados para os homens se darem bem, ou no amor ou na vida. É uma galeria de produtos obsoletos, como claviculone eletrônico, spray norueguês cebolov, etc – além de se perceber aqui que o narrador não consegue mais se reintegrar na sociedade, tem-se uma crítica ao consumismo.

Vinte sete meses depois, em Portugal, foi visitar a tia. Assim que entrou, a única coisa que ouviu da tia foi: “ – Estás mais magro. Sempre achei que a tropa te tornaria homem, mas contigo não há nada o que fazer.”

Assim que acabou de narrar, a “interlocutora muda”, sai e ele, como costumava fazer quando criança, pensa em puxar os lençóis para cima e fechar os olhos, temendo, ironicamente, a visita da velha tia Teresa.

Comentários

Discutir o tema da viagem como resgate de uma experiência humana dolorosa, num cenário em que os atores não dialogam amigavelmente, não desejam trocas de experiências culturais e, se sobreviverem, trarão no corpo as marcas de uma guerra fratricida, é o cerne dessa comunicação.

A personagem não nomeada de Antunes é incitada por membros de sua família, tradicional portuguesa, a acreditar que o exército fabrica homens de verdade. As maiores virtudes tais como; valentia, honestidade, caráter entre outras, são atributos da farda, não do homem.

"Estás magro (...) . Felizmente que a tropa há de torná-lo homem. (Os cus de Judas, pág.12)

Numa crescente angústia o soldado mobilizado para combater em terras de além-mar, vai sendo conduzido, como um boi para o abatedor. Imagens do navio se afastando do cais a incerteza da volta, o choro, as lágrimas, talvez a última visão da cidade vão sendo retratadas.

"...Lisboa principiou a afastar-se de mim num turbilhão cada vez mais atenuado de marchas marciais em cujos acordes rodopiavam os rostos trágicos e imóveis da despedida..." (idem, pág. 16)

Porém, nem todos os que eram mobilizados deixavam-se levar nessa viagem quase suicida. Registros militares davam conta de um sem números de faltosos por ocasião da chamada para o engajamento final. O procedimento é assim descrito pelo jornal Diário de Notícias.

"Nos primeiros tempos, o capelão rezava uma missa campal, que depois caiu em desuso; o comandante da unidade mobilizadora, um coronel, proferia umas palavras alusivas à missão e entregava o guião ao comandante do batalhão mobilizado, um tenente-coronel, ou então da companhia, um capitão; (...) era concedida a licença de dez dias antes de embarque e pagas as ajudas de custo.
Neste momento, o militar era um mobilizado, ia a casa, despedia-se da família, fazia umas asneiras por conta, arranjava umas correspondentes para lhe escreverem, ou umas madrinhas de guerra e voltava à unidade mobilizadora para daí iniciar verdadeiramente a viagem.

Neste regresso faltavam uns quantos camaradas, que tinham decidido dar o salto para o estrangeiro ou baixado ao hospital com uma doença mesmo a calhar, mas os que restavam formavam de novo na parada do quartel..." (Jornal Diário de Notícias- Fasc. 5 pág. 50)
Para aqueles que iam sendo embarcados a viagem não é de busca, nem de aventura, tampouco trata da questão de conhecimento ou de experiências novas que se buscam por iniciativas próprias. São seres humanos que não entendem por devem ir matar outros de sua espécie em prol de um poder político que não lhes dizia respeito nem sequer o exerciam.

"Por volta do meio-dia, o navio recolhia as escadas e os cabos, a sirena apitava e, durante alguns anos, a instalação sonora tocava uma marcha intitulada ‘Angola é nossa’, independentemente do destino – um ritual abandonado nos anos mais próximos do fim da guerra.
O navio afastava-se lentamente, virava a proa à foz do Tejo, passava por baixo da ponte e deslizava diante da Torre de Belém" (J D.N. pág.5l)O mar: estrada líquida pela qual Portugal alcançou a notoriedade em função da rota de suas caravelas, é, neste caso, símbolo de agruras para a soldadesca em cujo destino preferem não pensar. Os pioneiros navegantes contemplaram suas águas salgadas com outros olhos, com espanto e admiração. Estes, que vão rumo aos Cus de Judas, quase não o reparam e, se o fazem, o maldizem.

Para o soldado português combatente na guerra colonial na obra de Antunes tanto a cidade como o mar são visto como símbolos negativos.

Cidade colonial pretensiosa e suja de que nunca gostei, gordura de umidade e calor, detesto as tuas ruas sem destino, o teu Atlântico domesticado de barrela (...) O meu país, Ruy Belo, é o que o mar não quer (Os cus de Judas, pág. 68)

Para a personagem de Antunes, a água do mar de Luanda ‘assemelhava-se a creme solar turvo’ (pág.19), e eles (soldados), não passavam de ‘peixes mudos em aquários (pág.86), ratificando a simbologia do mar que já constatara na poesia Melo e Castro.

Após a chegada dos portugueses(...) o mar passa a ser, não só a via da invasão européia portadora da descaracterização cultural, mas também, a via da partida, da ruína e da morte causadas pela captura e venda dos escravos, pela emigração forçada e pelo drama dos contratados. Mar, espaço da morte, de onde se não volta mais.( págs. 11-16)

Lobo Antunes tece um discurso que nos deixa pistas sobre a desconstrução da viagem no contexto colonial português, que se revelará em outras obras como As Naus. Neste cenário o encontro com a situação de guerra vai expor as feridas que ainda ecoam no contato entre colonizador e colonizado.

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